Entenda o que é e como evitar situações de dano moral aos trabalhadores da construção; má informação dos gestores e antigos “costumes” de canteiro aumentam os riscos jurídicos
Na percepção de construtoras e advogados consultados para esta reportagem, as empresas estão mais sujeitas a pedidos de indenização por dano moral aos trabalhadores de canteiros. Modelos de gestão antigos, valores corporativos não definidos e preparação inadequada de lideranças, aliados à pressão por resultados, têm contribuído para a formação de ambientes com alta carga de estresse, onde a humilhação e a exposição de trabalhadores a situações vexatórias tendem a se tornar mais comuns. Por outro lado, algumas empresas relatam haver exagero com relação a esses casos. Muitas se queixam da falta de entendimento claro por parte do empregado sobre quais os limites de uma relação adequada entre líder e liderado, o que resulta, segundo elas, em demandas judiciais às vezes descabidas.
Segundo as fontes consultadas, o maior esclarecimento dos funcionários somado à pressão crescente nos canteiros tem aumentado os pedidos de indenizações por danos morais |
“Hoje é possível o empregado, por meio de um processo trabalhista, acionar a empresa pleiteando o dano moral. Anteriormente, esta demanda só poderia ser feita em fóruns cíveis. Essa mudança certamente repercutiu no aumento dos pedidos de indenizações”, acredita Vanessa Lima, diretora de recursos humanos da construtora e incorporadora Cosil.
Para Lia Rosella, advogada do escritório Rosella Advogados Associados, que presta serviços ao Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil (Sintracon), o número de pedidos de indenizações vem crescendo porque os empregados tomaram consciência de direitos e dos limites do empregador. “A busca por esclarecimentos tem sido maior e mais frequente. Eles estão querendo saber se as situações pelas quais passam são lícitas ou não”, conta.
Entenda o que é
De acordo com a advogada especialista em Direito Imobiliário e Trabalhista Dinamara Silva Fernandes, sócia do escritório Fernandes e Rocha Advogados Associados, o dano moral pode ser entendido, em poucas palavras, como um dano que advém da humilhação, vergonha, constrangimento, lesão à intimidade, imagem e integridade física de uma pessoa. “O dano moral é dor da alma, que atinge a dignidade e a honra da pessoa. O bullying, que advém de situações repetitivas de agressões físicas e verbais, é exemplo típico de dano moral”, afirma.
De acordo com a advogada especialista em Direito Imobiliário e Trabalhista Dinamara Silva Fernandes, sócia do escritório Fernandes e Rocha Advogados Associados, o dano moral pode ser entendido, em poucas palavras, como um dano que advém da humilhação, vergonha, constrangimento, lesão à intimidade, imagem e integridade física de uma pessoa. “O dano moral é dor da alma, que atinge a dignidade e a honra da pessoa. O bullying, que advém de situações repetitivas de agressões físicas e verbais, é exemplo típico de dano moral”, afirma.
A advogada explica que existe uma grande dificuldade para se definir exatamente os limites do que seja dano moral e prejuízos morais, pois ambos atingem a esfera psíquica da pessoa, causando-lhe angústia e sofrimento. “A prova do dano moral subjetivo deve ser robusta. Na esfera trabalhista, tem que ser provado que o dano adveio de uma ação ou omissão do empregador e que uma ou outra lhe causaram dano”, conta. Como exemplo, ela cita o empregado que é humilhado constantemente no local de trabalho por seu superior hierárquico, na presença de todos, e é colocado em situação vexatória e vergonhosa. “Ou mesmo aqueles que são obrigados a trabalhar em condições degradantes quando relegados a alojamentos sem qualquer higiene”, lembra, explicando que fatos corriqueiros da vida, que se traduzem em mero aborrecimento, não caracterizam dano moral. “É o caso de um empregado repreendido por suas faltas ou aquele empregado que é demitido sem justa causa”, completa.
Penas previstas
Em casos de humilhação ou de bullying relacionados estritamente com o trabalho, caberá o ajuizamento de uma ação na esfera trabalhista, que resultará na condenação da construtora ao pagamento de indenização por danos morais. O que variará em cada processo será a quantificação pecuniária (pagamento de valor, em dinheiro) do dano, conforme as condições de quem paga e de quem recebe. “Não há ‘tabela’ de valores, mas sim parâmetros que o julgador pode utilizar, tais como gravidade do ato, gravidade e extensão do dano, capacidade econômica do ofensor, caráter pedagógico da pena etc. Ela pode ser paga em parcela única (mais comum) ou em prestações sucessivas”, explica a advogada Lia Rosella.
Em casos de humilhação ou de bullying relacionados estritamente com o trabalho, caberá o ajuizamento de uma ação na esfera trabalhista, que resultará na condenação da construtora ao pagamento de indenização por danos morais. O que variará em cada processo será a quantificação pecuniária (pagamento de valor, em dinheiro) do dano, conforme as condições de quem paga e de quem recebe. “Não há ‘tabela’ de valores, mas sim parâmetros que o julgador pode utilizar, tais como gravidade do ato, gravidade e extensão do dano, capacidade econômica do ofensor, caráter pedagógico da pena etc. Ela pode ser paga em parcela única (mais comum) ou em prestações sucessivas”, explica a advogada Lia Rosella.
A indenização por dano moral também possui um caráter punitivo, cuja finalidade principal é de garantir não só a compensação das lesões, mas também a devida punição do ofensor e o desestímulo para que atos de mesma natureza não se repitam.
`A prova do dano moral subjetivo deve ser robusta. Na esfera trabalhista, tem que ser provado que o dano adveio de uma ação ou omissão do empregador e que uma ou outra lhe causaram dano`
Dinamara Silva Fernandes, advogada especialista em direito imobiliário e trabalhista do escritório Fernandes e Rocha Advogados Associados
De acordo com Leandro Fadel, advogado trabalhista do escritório Peres e Aun Advogados Associados, caso a humilhação ultrapasse o âmbito do trabalho e resvale na vida pessoal do ofendido, caberá processo por injúria, calúnia ou difamação, crimes previstos no Código Penal Brasileiro e passíveis de detenção ou reclusão por parte exclusiva do agressor. O mesmo tipo de pena se dará em caso de ofensa de cunho racista, caracterizando crime de racismo. “Na esfera criminal, a empresa não responde pelo ato ilícito, uma vez que o crime tem natureza personalíssima”, lembra o advogado.
Dois relatos
Veja, abaixo, relatos de um trabalhador de canteiro e de um engenheiro sobre casos reais de dano moral. Os nomes das fontes foram trocados para preservar a identidade dos profissionais.
`Depois de cinco anos, finalmente ganhei a causa. Voltei a trabalhar em construtoras grandes sem nunca esconder o fato de ninguém`
AMEAÇA E PRECONCEITO NO CANTEIRO
“Trabalhava como operador de cremalheira em uma grande construtora. No dia do ocorrido, o equipamento não estava montado, então fui pintar um dos muros da obra. lembro-me que o mestre de obras havia executado um serviço de forma errada e foi repreendido pelo coordenador da obra. ele acabou descontando sua raiva em mim, me abordando, junto com o encarregado de obras, de uma maneira humilhante, me chamando de macaco e homossexual. O encarregado me ameaçou de morte caso eu ousasse processá-los. Disse que encheria meu peito de bala. Usou exatamente essas palavras, e parecia não estar brincando. Na hora, fiquei desesperado. Com o apoio do próprio engenheiro da obra, decidi ir para a delegacia com as cinco pessoas que testemunharam o fato. Os policiais chegaram a ir ao canteiro, mas tanto o mestre como o encarregado já haviam fugido. Trabalhei por mais dez dias na obra e foi um inferno. Durante todo o tempo, o mestre de obras ficou tentando me convencer a retirar o processo contra ele. inclusive dizia que podia me arrumar emprego na obra que eu quisesse. Como não cedi, a empresa decidiu me demitir. A alegação foi excesso de falta no trabalho, o que era uma inverdade. inclusive não respeitaram nem o fato de eu estar em período de estabilidade por conta de um acidente de trabalho que comprometeu meu braço. Foi quando decidi procurar o Sintracon e fui orientado pelos advogados a entrar com o processo por danos morais. Depois de cinco anos, finalmente ganhei a causa. Voltei a trabalhar em construtoras grandes sem nunca esconder o fato de ninguém. Nas entrevistas de emprego, inclusive, recebi o apoio dos empregadores. Por muito tempo, andei nas ruas com medo. Não podia ver uma moto se aproximar de mim, pois lembrava da ameaça de morte feita pelo encarregado. Felizmente, nunca mais nada parecido aconteceu comigo, mas ainda sinto raiva e tenho problemas por conta dessa agressão, pois não tive acompanhamento psicológico nenhum.” José, operador de cremalheira* `Acredito que seja a hora de as construtoras entenderem melhor o assunto e orientarem melhor seus funcionários`
EXAGEROS E OPORTUNISMO
“recentemente, a empresa onde trabalhava enfrentou dois processos desse gênero. Um rapaz que tocava uma obra deu uma bronca em um operário, que logo juntou testemunhas e ameaçou nos processar. Na construção civil, dentro de uma obra, é muito raro as pessoas se comportarem como ‘escandinavos’. em muitas situações o tratamento não é polido. Hoje, qualquer um que fale em um tom mais alto já pode ser alvo de processo pelo fato de o funcionário se sentir ofendido. Parece que há pessoas sendo orientadas a processar colegas ou superiores de trabalho por danos morais. estão se aproveitando da situação. em outra situação foi preciso retirar um móvel de uma sala por conta dos rearranjos de fim de obra – readequação absolutamente natural – mas essa atitude foi maldosamente interpretada como uma humilhação e perseguição. existiu uma dramatização em torno de algo que foi previamente combinado, numa tentativa clara de aproveitamento da situação. Na hora de dar uma bronca no funcionário, os superiores têm de ter cuidado. Por outro lado, os elogios também podem ser vistos como assédio sexual. está havendo um exagero, as pessoas estão ficando paranoicas. Acredito que seja a hora de as construtoras entenderem melhor o assunto e orientar melhor seus funcionários com treinamento e reeducação. Acho que essa é a única saída para que as empresas evitem abusos. Há dirigentes de construtoras que são conhecidos pela grosseria com que lidam com seus funcionários. Serão alvos fáceis na mão de funcionários e advogados oportunistas. infelizmente, as pessoas não sabem se comportar e muitas vezes até merecem sofrer esse tipo de processo. O que não pode haver, repito, é exagero.”
Eduardo, engenheiro* * Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes. |
ENTREVISTA – LIA ROSELLA
Diferenças entre dano e assédio moral
O que caracteriza, juridicamente, dano moral?
Dano moral é a consequência de atos que agridam a moral de uma pessoa, de ataques à sua dignidade, à personalidade, à honra ou à intimidade. É caracterizado por dor, angústia, estresse, medo e constrangimento. Contrapõese ao dano material, pois afeta a condição psicológica da pessoa. Situações de humilhação e bullying têm como consequência o dano moral do humilhado, sempre. No que difere do assédio moral?
No ambiente de trabalho, a caracterização de assédio moral se dá pela continuidade de atos e situações que depreciem o empregado ou suas condições de trabalho. A pessoa tem tratamento diferenciado ou tendencialmente pejorativo, “pequenas doses” de ofensas que, no conjunto de atos e pela repetição, resultem em verdadeiro transtorno ao empregado, impulsionando-o a pedir demissão. Na construção civil, o mais comum é a humilhação que acarreta dano moral ou o assédio moral?
Pelos relatos que recebemos, num canteiro de obra é mais comum humilhações pontuais, ou mesmo em repetição ao mesmo empregado – mas sem chegar ao assédio moral. Pelo próprio formato do ambiente de trabalho (com locais isolados uns dos outros) e pelo dinamismo (alternância de obras, por exemplo), não é formada uma “situação propícia” ao assédio moral, salvo casos de garantia de emprego. Por humilhações pontuais, destacamos os limites das brincadeiras entre colegas e superiores, com uma ofensa. `No ambiente de trabalho, a caracterização de assédio moral se dá pela continuidade de atos e situações que depreciem o empregado ou suas condições de trabalho` Lia Rosella, advogada do escritório Rosella Advogados Associados |
Quem paga
Se o empregado ingressar com uma reclamação trabalhista e esta for julgada procedente, quem arcará com a indenização será a construtora. No entanto, caso seja constatada a atitude dolosa (intencional) do superior hierárquico no sentido de humilhar seu subordinado, a construtora poderá mover uma ação de regresso contra o empregado assediador. “Isto quer dizer que a empresa poderá cobrar os valores despendidos na ação trabalhista da pessoa que realmente deu ensejo a toda essa situação”, explica Fadel.
Já nos casos em que o autor da humilhação for um empreiteiro terceirizado, o humilhado poderá ajuizar reclamação trabalhista contra ambas as empresas (terceirizado e construtora). A construtora, em caso de condenação, não será a devedora principal. Mas, como explica o advogado, figurará no polo passivo da demanda para garantir o valor do débito, no caso de a empreiteira terceirizada falir ou não manter condições financeiras de arcar com o débito em questão. “Nessa situação, também caberia a ação de regresso contra a empreiteira terceirizada, ou seja, a construtora poderá cobrar os valores despendidos na ação trabalhista da empresa devedora principal. No entanto, dificilmente obterá êxito no tocante ao ressarcimento dos valores despendidos na reclamação trabalhista”, observa Fadel.
Como evitar
Instruir os superiores hierárquicos com palestras, treinamentos e cursos sobre o que é dano moral e quais as consequências jurídicas que pode trazer à empregadora é a melhor maneira da construtora se precaver. De acordo com Dinamara, é fundamental que a empresa coíba excessos no tratamento entre os funcionários.
Instruir os superiores hierárquicos com palestras, treinamentos e cursos sobre o que é dano moral e quais as consequências jurídicas que pode trazer à empregadora é a melhor maneira da construtora se precaver. De acordo com Dinamara, é fundamental que a empresa coíba excessos no tratamento entre os funcionários.
“Ainda que em ambiente de obra, a utilização de gritos e palavrões não deve ser prática comum. O colaborador não deve ser abordado com brincadeiras de mau gosto, pois no ambiente de trabalho deve-se ter e exigir respeito. Não há espaços para intimidade”, lembra. “Incentivar o uso de palavras como ‘obrigado’, ‘com licença’, ‘por favor’ e ‘desculpa’ pode contribuir para gerar um ambiente mais agradável, de maior confiança, respeito e produtividade”, completa a advogada.
A escolha dos superiores hierárquicos também deve ser feita de modo criterioso. “Eles sofrerão muita pressão e lidarão com pessoas de nível social mais baixo, por isso a seleção tem de levar em conta a capacidade do funcionário em lidar civilizadamente com essas situações”, observa Fadel.
Quando o dano moral já tiver acontecido, mas puder ser reparado, o engenheiro da obra tem a obrigação de entender o que se passou e conversar com as partes envolvidas para tentar harmonizar a situação. Se a recomposição no ambiente de trabalho não for possível, o ideal será mudá-los de setor e até de obra, se for o caso. “Mas se o fato ocorrido for extremamente grave e constrangedor, o faltoso deve ser punido com a demissão e, se houver prova robusta, por justa causa”, observa Dinamara.
Para minimizar situações como essas, a construtora e incorporadora Cosil ministra, periodicamente, treinamentos às lideranças de obra sobre o tema, além de manter um canal de comunicação aberto e dispor de uma assistente social em campo para prestar apoio a seus colaboradores. De acordo com Vanessa Lima, diretora de recursos humanos, nenhum tipo de discriminação, assédio ou desrespeito é permitido. “Situações pontuais que por ventura aconteçam são tratadas com toda a atenção. Também cumprimos a legislação trabalhista e damos legitimidade às representações sindicais”, afirma.
Fonte: Construção Mercado